sábado, 29 de março de 2008

Ruy Guerra - Soneto? - Fado Tropical.

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos um golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega a executa
Pois que senão o coração perdoa..."


p.s.: Esse post é uma homenagem a uma pessoinha muito querida que, vira e mexe, me apronta uma dessas. Valeu, gatinha ;)

sábado, 22 de março de 2008

"Conversa de padaria I" ou "O Sorriso do Simão"

Eu encontrei esse cara, depois de algum tempo sem vê-lo, em uma padaria. O sol começava a nascer, acho que o sino badalava as seis da manhã, e eu estava acompanhado por meus três fiéis escudeiros: meu cigarro, meu café (devidamente servido em um copo de boteco) e a página de esportes de um jornal local – onde só leio as colunas futebolísticas e de automobilismo. Esperava ansioso meu pão-na-chapa: o quarto escudeiro, posto que sou um pretenso cavaleiro importante.


Enfim, Simão sentou-se no banquinho ao lado. O nome era de velho, dado pelo pai, um português clássico: daqueles barrigudos, bigodudos e baixinhos. Deu-me um tapa no ombro que quase me fez engolir o cigarro – atrapalhou a tragada que eu ensaiava nos últimos 0.36 segundos. Ele com um sorriso largo no rosto; eu com minha cara de sempre – olhos fundos de noites mal dormidas, nariz coçando, barba por fazer, cabelo desgrenhado. O de sempre. “Mais do mesmo”. Minha noite tinha sido uma merda. Não que meu humor seja bom – eu sou um cara introspectivo, de manhã sou rude (aliás, isso dá uma boa poesia), sempre. Mas essa noite tinha sido especialmente ruim. E o sorriso do meu companheiro me incomodava. Muito.


Che bello, huh?


Então, tentando ser cordial, perguntei sobre aquele sorriso. Afinal, seria bom escutar uma boa explicação que impedisse que meu escárnio se atirasse contra aqueles dentes amarelos. Ele começou com aquele papo que nós, homens, estamos mais que acostumados a ouvir: “- Cara, conheci a mulher mais linda da minha vida essa noite...” [é incrível como a vida sexual – hiper desinteressante – dessas pessoas caminha em um clímax: toda oportunidade gera uma mulher ‘mais linda da minha vida’] “... inteligente, gata, corpaço, centrada...” [Beleza, L. Amaral volta ao Flu, por enquanto] “... e tem opiniões interessantes, é charmosa, à sua maneira...” [Uhhh, Felipe Massa conseguiu a ‘pole’ na Malásia]. Umas olhadas de rabo de olho, aquele “humrum” misturado com fumaça e o café descendo pela garganta.


Emendei o pedido de mais um copo de café com a oferta de outro pro meu companheiro de balcão. Antes que ele pudesse responder, perguntei sobre a performance sexual da menina. O semblante mudou de repente. Consegui enfiar a agulha no machucado, pensei... ele realmente pareceu ofendido. De repente o sorriso... “- Por que acha que consegui ficar com ela?”. Bem, isso me fez dobrar o jornal e olhar pro imbecil. A raiva triplicou. Ele ficou falando da mulher, atrapalhando meu desjejum, e nem conseguiu uns beijos? Que filho da puta, em sã consciência, atrapalharia o começo do dia e fim da noite de um homem como eu?


Aí foi que o cara perdeu os limites da alegria matutina. Abriu um sorriso largo, sabendo que tinha me colocado em cheque. Me olhou nos olhos com um cinismo que eu desconhecia. Eu, que sempre vi no Simão aquela típica figura bobona, que daria um ótimo marido-corno, fui colocado na posição de objeto de escárnio. Não, assim não. Retribui o meio-sorriso e o olhar sarcástico. Agora a coisa tava ficando divertida: um duelo formidável entre as almas mais impuras da madrugada carioca.
“- Mas fala, Simão... comeu ou não comeu a guria?”


“- Comi não.”
“- Então caralho, que porra é essa?”



Ele repetiu o sorriso. Minha mão só não se fechou por causa do copo de café. Ato reflexo, engoli o café fervendo, queimando metade da minha língua e um pedaço da garganta. Tossi, e o filho da puta lusitano gargalhou. Como pude confirmar depois, o cara sequer tinha beijado a menina. Chegou o café dele, e mais um pra mim. Ele bebeu de uma vez, me olhou, deu uma piscada e um sorriso – dessa vez sincero. Levantou-se, deu um segundo tapinha no meu ombro e falou que precisava ir. Tinha que lavar o carro do pai, ou algo do tipo.


Levei mais uns trinta minutos, e mais cafés e cigarros, pra entender o porquê daquilo. Meu interesse pelo jornal e pelas peripécias futebolísticas do Thiago Neves tinham ido pro saco. Aí tive uma epifania: eu e Simão éramos mais parecidos do que eu gostaria de admitir. Assim como ele, eu dificilmente me interesso genuinamente por alguém. Normalmente meu interesse acaba quando eu gozo. Com Simão, a coisa era parecida. E essa noite ele conheceu alguém interessante... a despeito de ter conseguido ou não a menina. E, no lugar dele, eu também ficaria muito feliz.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Reflexões sobre o Genitivo.

O direito à propriedade é um dos baluartes da sociedade capitalista. Ideário tipicamente burguês, o Iluminismo nos trouxe esse libelo da esquisitice humana: o direito de se dizer dono de algo, além do direito de se municiar em prol da defesa deste algo. Obviamente as coisas não são tão simples: a posse existe desde que o primeiro pithecantropus brincou de tocar fogo em um galho de salgueiro, mas a coisa chegou a níveis alarmantes em meados do século XVIII.



Propriedade intelectual? Não fode.


Veja bem, não me entendam mal. A idéia de posse é adjacente à existência humana desde sempre. O cigarro que fumo agora é meu: eu o tenho entre os lábios, o comprei com o meu dinheiro e os pulmões que vão virar carvão são meus. Digo o mesmo do café que bebo. Mas o que me assusta é a idéia de propriedade intelectual. Mesmo hoje, em um mundo dirigido e digerido pela ética capitalista, poucos são os homens e mulheres familiarizados com a idéia de possuir uma idéia. Me recordo de ler um texto sobre a Revolução Industrial inglesa (cerca de 1750), onde falavam sobre a criação das primeiras patentes. Patentes de teares modificados, engenhocas que permitiam maior velocidade de produção e coisas do tipo. Mas como ser o dono de uma idéia? É natural clamar a posse de algo material, como um carro, mas a idéia de colocar um motor de combustão interna que faz girar um eixo virabrequim não tem dono. Você pode possuir o projeto de um carro, mas do ponto de vista material: os papéis com o design do constructo, não a idéia.

Isso aqui foi invenção de mendigos ingleses. Deveria eu pagar royalties?



Devemos lembrar que nada se cria a partir do nada. Lavoisier trouxe essa idéia de Demócrito (?!?!) ao estudo da natureza: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Toda idéia, todo conceito, toda criação deriva de um legado deixado por incontáveis gerações de inventores, filósofos, humanos – notórios ou anônimos. O gênio inventivo do Homem modifica essas idéias e conceitos, gerando novas idéias e conceitos, que serão absorvidas, internalizadas, modificadas e gerarão, com o tempo... novas idéias e conceitos. E aí? A quem devo pagar os royalties por isso?


Vamos trazer esse papo pra um campo que eu domine mais que o vulgo. Falemos do Renascimento (meados do séc. XIV a meados do XVI). As traduções dos autores gregos e latinos antigos, as leituras dos comentadores árabes e europeus de Aristóteles, Platão, Epicuro, Sêneca... são o quê? O que seria de nós se Galileu não utilizasse uma invenção árabe – a luneta – pra olhar para os céus, enxergando dois novos planetas girando na órbita de Júpiter? E quando Thyco Brahe utilizou de geometria euclidiana pra calcular a paralaxe dos cometas, considerados até então fenômenos meteorológicos? Aliás, Kepler – o próprio – nada mais fez que corrigir os cálculos de Brahe, seu professor e mecenas. Newton nunca se sentou embaixo de uma macieira pra ‘descobrir’ a ‘Lei da Gravidade’. Aliás, o próprio conceito de ‘Lei natural’ não é newtoniano. É plágio, é cópia. E daí? “Sentamos nos ombros de gigantes para enxergarmos mais longe que eles”. Os gigantes eram os grandes autores clássicos. Os pigmeus da brincadeira eram os grandes nomes do Renascimento e da Revolução Científica.


Uma idéia não tem um único dono. Tem uma espécie inteira. Todo e qualquer conhecimento deriva de incontáveis vidas ‘perdidas’ em pesquisa, em labor inventivo, em palavras – escritas ou não – em noites mal dormidas, em enxaquecas, doenças, mortes. Presunção demais acreditar que podemos chorar porque alguém resolveu copiar um texto nosso e não nos dar o crédito. Eu não dou os créditos a Camões e aos outros heróis que fixaram a língua portuguesa. E uso de ‘sua criação’ o tempo todo. Sequer me lembro dos fenícios por terem talhado os rudimentos de nosso alfabeto. Nem pago os royalties aos hindus por terem elaborado os algarismos que utilizamos pra formar nosso sistema numérico. Quando como uma pipoca, não digo ao pipoqueiro que sacrifique um guerreiro em nome de algum deus asteca.


Quando criamos algo, precisamos ter em mente que o beneficiário desse ato sublime é a humanidade inteira. Nada mais honesto que publicar uma idéia em um espaço que se pretende democrático como a internet. Um texto em um blog é de domínio público. Ou, ao menos, deveria ser. Ademais, as lágrimas roladas por ter um texto copiado também não são suas, mein freund.


Em tempo: alguém que defende a idéia de 'propriedade intelectual' deve concordar com nossos companheiros estadunidenses; os irmãos Wright foram os primeiros a patentear a idéia de um avião. Santos Dummont nunca patenteou o 14-Bis ou o Demoiselle. A idéia não era dele. Era de uma geração de ilustres físicos que estudavam os conceitos básicos da aerodinâmica desde a Antiguidade Clássica. O que nosso inventor fazia era vender os projetos de construção de um aeroplano em lojas.


P.S.: A quem porventura interessar, o blog é um espaço público. Quem quiser copiar posts, faça. Não preciso permitir isso. Simplesmente faça. O fundamento da 'propriedade intelectual' é o mesmo para músicas, imagens, textos, etc. Copie. Cole. "Contra burguês, baixe mp3" (não Carol, isso não foi inventado pelo 'Teatro Mágico').

sábado, 15 de março de 2008

Uma ode à língua materna.

Língua Portuguesa
(Olavo Bilac)

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

domingo, 9 de março de 2008

O velho moço (trocadilho)

Então ele caminhava sobre seus próprios passos. Sempre devagar, sempre preciso. O mesmo caminho de sempre, sem nunca enjoar. Era quase como uma terapia.

Não que a vida fosse calma... muito pelo contrário. Mas esses trinta minutos diários de caminhada, nessa rotina em que ele poderia prever cada acontecimento vindouro, eram seus trinta minutos de paz. Mais do que necessário.

Sempre o mesmo ritual: coloca o pé na soleira da porta, planta o corpo na calçada em frente de casa, estica o corpo e inspira o ar frio da rua, em um barulho irritante. Uma fungada de leve. E aí, zombando de toda a saúde e oxigênio à sua volta, ele acende um cigarro. Dá uma baforada pro alto e se diverte tentando separar a fumaça do cigarro daquela fumacinha, que nada mais é que o ar quente dos pulmões se condensando.





Daí ele começa seus passos. Intermitentes, intermináveis, um colosso de carne e ossos sempre em frente, como um Panzer que não se deixa atrapalhar pelos cadáveres em seu caminho. Assim ele vai, atropelando os sonhos e fantasias ordinários de gente ordinária: é seu momento de triunfo, nada pode detê-lo.

Cumprimenta o verdureiro que anuncia a mais nova alface comum, faz um carinho na criança que vai pra escola, um tapinha nas costas do cachaceiro das seis da manhã. Pensa sobre como a vida passou rápido e ele já caminha para os seus cinquenta verões - embora esteja no meio do inverno - e como sempre se considerou velho.

Velho, sim. As dores imaginárias de sempre se tornaram uma artrite que anuncia a mudança de tempo. Os hábitos taciturnos, a mania de reclamar de tudo e falar mal da juventude... isso ele carrega consigo desde os seus quinze anos de idade. Enquanto seus amigos liam Monteiro Lobato, ele se divertia com Dostoiévski. No fim das contas, dá tudo no mesmo. Só porcaria. Porcaria russa ou brasileira, fede tudo igual. Já foi o tempo em que ele se orgulhava de sua ampla experiência literária. Hoje ele é um cínico.

Ainda falta pra chegar à fábrica. Começou a trabalhar tarde, então ainda não se aposentou. Vive torcendo pra que perca um dedo e poder se aposentar por invalidez. Porque trabalho é coisa pra trabalhador. Ele não é um trabalhador. Aliás, odeia a idéia de trabalhar. Ele pensa demais. Sempre pensou. Pensava, inclusive, que a única coisa boa de ser velho era não precisar trabalhar. Pensou errado. E velho ele sempre foi.

E velho ele continua. Caminhando, porque se recusa a não pagar ônibus. Ademais, são seus trinta minutos diários de glória. E ele não trocaria trinta anos de juventude por isso.

sábado, 8 de março de 2008

Fumaças e Vapores

Precisava de um lugar menos 'temático' pras minhas (di)vagações da madrugada. Algo mais genérico. Nada relacionado aos astros ou ao mundo vegetativo. Pensei: "- O que há de mais constante em minha vida, além da tatuagem e da minha impertinência?". A resposta era óbvia... nicotina.



Aceita um?



Então, sinta-se à vontade por aqui. A fumaça pode até incomodar, mas isso não é problema meu. Culpe a você mesmo ou a Deus. Não acredito na existência de ambos.

Se quiser, sirva-se de uma xícara de café.