sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Ao Iconoclasta.

Drástico destino o dos homens de pouca fé e muita razão:
com eles morre o dogma e nasce o paradigma;
é deles o (des)prazer de alastrar a heresia e a blasfêmia;
são eles que se sentam sozinhos à noite.

Obscura vida a dos homens de pouca fé e muita razão:
é deles o dever de fazer correr as novidades de ontem -
lidas e relidas sob novas lentes -
são seus olhos que enevoam,
são suas cabeças que doem.

Triste fim o dos homens de pouca fé e muita razão:
suas almas são as solitárias,
são seus corações meras bombas de sangue,
são suas lágrimas que inundam e fertilizam a terra;
a mediocridade lhes foge como uma donzela.

domingo, 7 de setembro de 2008

Papo de bar.

Sentou-se ao balcão, pediu sua cachaça, acendeu um cigarro e passou a fitar as pessoas. Ele faz isso de vez em vez; gosta de admirar o espírito humano em seu ambiente natural, como um antropólogo. As vezes ele compactua com seu objeto de estudo, flerta com a mediocridade e acaba comendo alguém na noite. Mas não nessa noite. Não dessa vez. Ele estava preocupado com o rumo que sua vida tinha tomado e, como sempre faz nesses momentos de lucidez, bebe até cair em meio as reflexões. Ele bebe as inquietações do mundo, como uma vez uma prima lhe disse.

Do alto de seus trinta anos Arnaldinho ainda não é o homem que planejava ser. Na verdade ele é um bocado diferente do que deveria ser. Sim, ele continua gostando de poesia, de cachaça, de noites entre os lençóis de alguma senhorita e de fumar. Mas hoje ele anda de terno e gravata... como dois terços desses casos, a superfície não lembra em nada o espírito. Ele ainda cultiva sua barriguinha, no entanto.

"- Onde foi que tudo deu errado? Qual foi o momento em que as coisas se desvirtuaram dessa forma?"

Hoje ele deu uma folga pra calculadora que carrega dentro de sua cabeça. Não vai dar voz aos avits ou deficits, nem ao sólido... o único líquido que o interessa está dentro do copo, descendo pela garganta. Hoje ele percebeu que, em algum momento, ele deixou de fazer as coisas por prazer e passou a encarar o mundo como uma obrigação. Se antes o mundo era um desafio que o encantava, agora é um desafio a ser vencido. Não se enganem, leitores; houve uma mudança epistêmica muito séria em algum momento. Algo nele - mais provavelmente fora dele, se eu bem o conheci - o afetou. Hoje ele está aqui pra entender essa joça. Ele foi ao bar no afã de encontrar respostas que só ele carrega.

Ela vem, senta-se ao banco ao lado e pede o isqueiro. Ele estende o braço e dá à mulher o que ela pediu. Ela percebe que Arnaldinho nem a olhou. Ela sorri, gosta dos difíceis. Cruza as pernas e o vestido sobe... que vestido o quê? É uma calça jeans. E jeans não sobe. Mas ela cruza as pernas... é um ato condicionado. Ele olha pras pernas dela - sem nenhuma intenção sexual - a vê de cima pra baixo ("- Hahahahaha, que clichê mal encaixado...") e deixa escapulir um sorriso pelo lado da boca.

"- Me paga uma bebida?"
"- Não, anjo. Tenta de novo, sem clichês dessa vez, ok?"
"- Tá, beleza. Como foi seu dia?"
"- Uma merda. E o seu?"
"- Nossa, você é sempre assim?"

É, ele não era. Bem, não costumava ser, mas não era disso que estávamos falando?

"- Mas o que fez seu dia ser tão ruim?"
"- Tive uns momentos de lucidez. Pensei na vida e advinha?! Ela é uma merda. Daí eu vim pra cá pensar nisso."
"- Bem, eu posso te ajudar?"
"- Você é a mulher que sempre quis ser? Digo, já parou pra pensar nisso? Provavelmente já. E deve estar bem longe do que queria pra você."
"- Nossa, eu só queria trepar..."

sexta-feira, 4 de julho de 2008

E um ciclo se fecha.

Tomou seu café de um gole, me beijou e então se foi. Se foi pra nunca mais? Tomara que não! Durante meses estivemos juntos, e sabe que eu me acostumei em tê-la por perto!? Juntos fomos à guerra, derrotamos gigantes e sangramos no Campo de Marte. Desembainhamos gládios, estouramos foguetes e colorimos a noite carioca.

Mas sempre soube que teria um fim. Sempre tem. Achava que seria de outra forma, mas raramente conseguimos ler as estrelas da forma como merecem... " - Mensagens cifradas, aspirante a astrólogo!" Tantos tentaram, pouquíssimos conseguiram. Ao seu lado fiz desafetos, completei etapas, venci mundos inteiros. Saí da rotina, encarei a rotina, mudei a rotina.

Momento de dor. Mudanças doem, sempre doem. Mas mudança é a única coisa perene nesse universo. O telúrio. "- Tudo flui."

E agora, o fim da fila. Uma nova etapa se inicia... uma era de luta. Uma nova guerra. Outro Campo de Marte, na mesma arena. Domingo é dia. E eu estarei ao lado dela de novo.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Divagações pseudo-escolásticas.

E eu tentando quebrar a monotonia do frenesi cotidiano em um copo de cachaça...
Que tolo! Pueril como um velho que só eu sei ser.
Para não ter ressaca, emende uma bebedeira na outra.
Para não menstruar, emende uma gravidez na próxima.

E eu às voltas com Saussure, estrutura, sujeito, Marx e outros libelos da ignorância humana. Como vi em uma série de ficção científica: "biologia... a prima pobre... o homem sabe mais sobre os planetas e meteoritos que sobre si próprio..."

E é possível ser diferente disso?

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Quando a paixão e o vício se misturam.

Narro aqui o comum, o cotidiano. Estava eu ontem em uma cachaçaria conhecida no Centro do Rio, próximo à Lapa, mordiscando um gurjão de frango e bebericando um belo exemplar de um alambique mineiro, em companhia de uma linda amiga que me acompanha em duas paixões: a cachaça de qualidade e o Fluminense Football Club. Conversávamos amenidades, eu e Manuela, quando fui interpelado por um rapaz que tenho em grande estima - Casemiro, torcedor do São Paulo e admirador de drinques exóticos que estragam o gosto e o aroma de uma boa cachaça. Após a partida de ontem, ele veio me sacanear:

"- Meus grandes amigos tricolores, Nuno e Manuela... como é sentir o gosto da derrota para o tricolor paulista?!"

"- Perdão Casemiro... mas como já adiantava Nelson Rodrigues, só existe um tricolor: o Fluminense. O resto são times que usam três cores."

"- Mas o que é isso, Manuela? Quanto sarcasmo! Como eu já tinha dito, Libertadores é coisa de gente grande."

Pronto, o assunto descambara pro futebol, coisa que eu e Manuela estávamos evitando. Ambos somos apaixonados pelo Tricolor - o de verdade - e irremediavelmente caíamos a discutir a arte de conduzir a pelota com os pés... Dessa vez tentávamos, com algum sucesso, evitar o tema: estávamos ali por outros motivos, de igual nobreza e importância, a materializar um já planejado encontro.

Casemiro, por outro lado, nem era assim um torcedor muito presente. Gostava do São Paulo mas admitia que seu interesse era acompanhar os jogos da Champions' League européia. Namorava uma prima distante minha, com quem futuramente iria se casar. Formavam um belo casal. Ele e Fausta eram daqueles casais que dava gosto de ver: brigavam sempre, mas se amavam. Por que raios ele vinha estragar meu encontro?! Preferi ficar quieto e dar aquela bela fungada na cheirosa cachaça de Minas... Ademais, Manuela era dessas mulheres que não precisam de defesa: argumentam bem, entendem algo de futebol. Ela iria se sair bem.




Eles têm o Imperador? Aqui no Maracanã nós destronamos tiranos.



"- Adriano é Imperador, menina..."

"- Sim, concordo. Do nosso lado, temos o Coração Valente, que entrou pra História por engendrar um bem sucedido golpe de estado que tirou do poder o tirano Eduardo Longshanks..."

Pronto, chegamos naquele ponto onde realidade e mito se misturam. Eu ri, timidamente, enquanto puxava uma cadeira pra Casemiro, pedia uma cachaça para ele e pensava em algo inteligente para dizer. Tocava alguma coisa da Orquestra Imperial no bar, e eu comecei a cantarolar... coisa que irritou o Casemiro.


Isso sim é time.


"- E você, Nuno? Não vai dizer nada?"

"- Bem, eu estou lendo um livro chato de Antropologia pra aula do Fragoso..."

Manuela me olhou com reprovação. Eu nitidamente estava evitando falar de futebol. Casemiro soltou uma gargalhada:

"- HAHAHAHAHA, ele não tem nada a dizer..."

Paciência tem limite. E a minha tem um limite menor ainda.

"- Cara, vocês estão comemorando antes da hora. O Muricy mesmo disse que foi a melhor atuação do São Paulo nesse ano, enquanto qualquer um pode atestar que foi das piores do Fluminense. Vocês conseguiram um placar magro em pleno Morumbi e estão comemorando isso. Semana que vem o jogo é aqui no Maracanã. Isso sem contar mais algumas coisas... a primeira é que o time do Fluminense vai precisar atacar. A melhor forma desse time é exatamente quando precisa marcar gols sem sofrer. O meio do campo fica congestionado, nosso ataque evolui e marca gols. Sem falar que nosso melhor defensor estava machucado e volta semana que vem pro time. Quem vai marcar o Adriano dessa vez é o Thiago Silva, considerado por muitos o melhor zagueiro do Brasil, tão alto quanto o Adriano e bem mais forte que o Roger. Agora, me diz: você acha, sinceramente, que esse 1x0 no Morumbi valeu de algo além de apenas dificultar a inevitável classificação do Verdadeiro Tricolor, o das Laranjeiras?"

Manuela abriu um sorriso de satisfação e admiração. Casemiro baixou a cabeça com um sorriso tímido. Eu atingi a meta, lá onde a coruja dorme: acabei com a discussão sobre futebol sem grosserias, euforizei o papel do meu time e, principalmente, não precisei mentir. Então Casemiro apelou pra 'força dos fracos', como diria Nietzsche:

"- Quer apostar uma caixa de Brahma nisso?"

"- Não. A grana tá curta. Sem falar que antes dessa discussão estúpida sobre futebol, eu e Manuela estávamos exatamente discutindo pra que motel iríamos logo após fechar a conta. Ou seja, ainda vou morrer em mais uma grana hoje."

"- Tá, Nuno, me convenceu."

Então a coisa ficou do jeito que eu gosto. Casemiro sem-graça, Manuela com seu rosto indígena enrubescido e com os olhos arregalados, mas sem fechar aquele sorriso lindo que ela tem. E eu, calmamente, bebericava mais uma cachaça - uma de Paraty dessa vez.

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Quatro pegadas

Lembro agora dela. A conheci quando ainda era nova demais pra demonstrar algum carinho por mim. Mas ela demonstrou. Desde novinha me olhava com aqueles olhos sacanas, me convidando pra brincar. Depois que cresceu, nada mudou.

Não sei se alguém aqui sabe o que é sorrir só de olhar pra alguém. Eu me deitava no chão e ela apoiava a cabeça no meu peito... eu ficava fazendo cafuné, feliz por ouvir a respiração dela ao meu lado. E quando ela pegava no sono, eu me divertia ouvindo o ronco dela, baixinho.

Todo dia ela me recebia ao portão, depois de um dia estafante. Sempre me arrancava um sorriso. E eu sempre serei eternamente grato a ela por isso. Ela dava leveza ao peso cotidiano. Foi minha companheira em alguns dos momentos mais difíceis que passei enquanto estava com ela. Ouvia-me tocar violão com toda a paciência do mundo... me esperava acordada quando eu demorava pra sair do chuveiro. Foi minha companheira de insônia.

Adorava as poesias que eu lia pra ela. A ela dediquei algumas composições minhas também; ela nunca me precisou dizer que estava agradecida por isso. Todo dia, ao me acordar com beijos, ela mostrava. Me acordava com beijos, me beijava sempre que meu rosto estava ao seu alcance e, antes de dormir, me beijava por medo de não estar por perto no dia seguinte.

Amei a essa cadela mais do que amei qualquer mulher. Hoje, dia 10 de abril de 2008, às 19hs, morreu a minha preta. Ficam as saudades dos bons momentos - única possibilidade de eternidade, afinal - , as lágrimas do vazio que fica... o aperto no peito. O cheiro dela ainda está pela casa. Espero nunca me esquecer desse cheiro. Te amo, meu Hannão.

sábado, 29 de março de 2008

Ruy Guerra - Soneto? - Fado Tropical.

"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos um golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega a executa
Pois que senão o coração perdoa..."


p.s.: Esse post é uma homenagem a uma pessoinha muito querida que, vira e mexe, me apronta uma dessas. Valeu, gatinha ;)

sábado, 22 de março de 2008

"Conversa de padaria I" ou "O Sorriso do Simão"

Eu encontrei esse cara, depois de algum tempo sem vê-lo, em uma padaria. O sol começava a nascer, acho que o sino badalava as seis da manhã, e eu estava acompanhado por meus três fiéis escudeiros: meu cigarro, meu café (devidamente servido em um copo de boteco) e a página de esportes de um jornal local – onde só leio as colunas futebolísticas e de automobilismo. Esperava ansioso meu pão-na-chapa: o quarto escudeiro, posto que sou um pretenso cavaleiro importante.


Enfim, Simão sentou-se no banquinho ao lado. O nome era de velho, dado pelo pai, um português clássico: daqueles barrigudos, bigodudos e baixinhos. Deu-me um tapa no ombro que quase me fez engolir o cigarro – atrapalhou a tragada que eu ensaiava nos últimos 0.36 segundos. Ele com um sorriso largo no rosto; eu com minha cara de sempre – olhos fundos de noites mal dormidas, nariz coçando, barba por fazer, cabelo desgrenhado. O de sempre. “Mais do mesmo”. Minha noite tinha sido uma merda. Não que meu humor seja bom – eu sou um cara introspectivo, de manhã sou rude (aliás, isso dá uma boa poesia), sempre. Mas essa noite tinha sido especialmente ruim. E o sorriso do meu companheiro me incomodava. Muito.


Che bello, huh?


Então, tentando ser cordial, perguntei sobre aquele sorriso. Afinal, seria bom escutar uma boa explicação que impedisse que meu escárnio se atirasse contra aqueles dentes amarelos. Ele começou com aquele papo que nós, homens, estamos mais que acostumados a ouvir: “- Cara, conheci a mulher mais linda da minha vida essa noite...” [é incrível como a vida sexual – hiper desinteressante – dessas pessoas caminha em um clímax: toda oportunidade gera uma mulher ‘mais linda da minha vida’] “... inteligente, gata, corpaço, centrada...” [Beleza, L. Amaral volta ao Flu, por enquanto] “... e tem opiniões interessantes, é charmosa, à sua maneira...” [Uhhh, Felipe Massa conseguiu a ‘pole’ na Malásia]. Umas olhadas de rabo de olho, aquele “humrum” misturado com fumaça e o café descendo pela garganta.


Emendei o pedido de mais um copo de café com a oferta de outro pro meu companheiro de balcão. Antes que ele pudesse responder, perguntei sobre a performance sexual da menina. O semblante mudou de repente. Consegui enfiar a agulha no machucado, pensei... ele realmente pareceu ofendido. De repente o sorriso... “- Por que acha que consegui ficar com ela?”. Bem, isso me fez dobrar o jornal e olhar pro imbecil. A raiva triplicou. Ele ficou falando da mulher, atrapalhando meu desjejum, e nem conseguiu uns beijos? Que filho da puta, em sã consciência, atrapalharia o começo do dia e fim da noite de um homem como eu?


Aí foi que o cara perdeu os limites da alegria matutina. Abriu um sorriso largo, sabendo que tinha me colocado em cheque. Me olhou nos olhos com um cinismo que eu desconhecia. Eu, que sempre vi no Simão aquela típica figura bobona, que daria um ótimo marido-corno, fui colocado na posição de objeto de escárnio. Não, assim não. Retribui o meio-sorriso e o olhar sarcástico. Agora a coisa tava ficando divertida: um duelo formidável entre as almas mais impuras da madrugada carioca.
“- Mas fala, Simão... comeu ou não comeu a guria?”


“- Comi não.”
“- Então caralho, que porra é essa?”



Ele repetiu o sorriso. Minha mão só não se fechou por causa do copo de café. Ato reflexo, engoli o café fervendo, queimando metade da minha língua e um pedaço da garganta. Tossi, e o filho da puta lusitano gargalhou. Como pude confirmar depois, o cara sequer tinha beijado a menina. Chegou o café dele, e mais um pra mim. Ele bebeu de uma vez, me olhou, deu uma piscada e um sorriso – dessa vez sincero. Levantou-se, deu um segundo tapinha no meu ombro e falou que precisava ir. Tinha que lavar o carro do pai, ou algo do tipo.


Levei mais uns trinta minutos, e mais cafés e cigarros, pra entender o porquê daquilo. Meu interesse pelo jornal e pelas peripécias futebolísticas do Thiago Neves tinham ido pro saco. Aí tive uma epifania: eu e Simão éramos mais parecidos do que eu gostaria de admitir. Assim como ele, eu dificilmente me interesso genuinamente por alguém. Normalmente meu interesse acaba quando eu gozo. Com Simão, a coisa era parecida. E essa noite ele conheceu alguém interessante... a despeito de ter conseguido ou não a menina. E, no lugar dele, eu também ficaria muito feliz.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Reflexões sobre o Genitivo.

O direito à propriedade é um dos baluartes da sociedade capitalista. Ideário tipicamente burguês, o Iluminismo nos trouxe esse libelo da esquisitice humana: o direito de se dizer dono de algo, além do direito de se municiar em prol da defesa deste algo. Obviamente as coisas não são tão simples: a posse existe desde que o primeiro pithecantropus brincou de tocar fogo em um galho de salgueiro, mas a coisa chegou a níveis alarmantes em meados do século XVIII.



Propriedade intelectual? Não fode.


Veja bem, não me entendam mal. A idéia de posse é adjacente à existência humana desde sempre. O cigarro que fumo agora é meu: eu o tenho entre os lábios, o comprei com o meu dinheiro e os pulmões que vão virar carvão são meus. Digo o mesmo do café que bebo. Mas o que me assusta é a idéia de propriedade intelectual. Mesmo hoje, em um mundo dirigido e digerido pela ética capitalista, poucos são os homens e mulheres familiarizados com a idéia de possuir uma idéia. Me recordo de ler um texto sobre a Revolução Industrial inglesa (cerca de 1750), onde falavam sobre a criação das primeiras patentes. Patentes de teares modificados, engenhocas que permitiam maior velocidade de produção e coisas do tipo. Mas como ser o dono de uma idéia? É natural clamar a posse de algo material, como um carro, mas a idéia de colocar um motor de combustão interna que faz girar um eixo virabrequim não tem dono. Você pode possuir o projeto de um carro, mas do ponto de vista material: os papéis com o design do constructo, não a idéia.

Isso aqui foi invenção de mendigos ingleses. Deveria eu pagar royalties?



Devemos lembrar que nada se cria a partir do nada. Lavoisier trouxe essa idéia de Demócrito (?!?!) ao estudo da natureza: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Toda idéia, todo conceito, toda criação deriva de um legado deixado por incontáveis gerações de inventores, filósofos, humanos – notórios ou anônimos. O gênio inventivo do Homem modifica essas idéias e conceitos, gerando novas idéias e conceitos, que serão absorvidas, internalizadas, modificadas e gerarão, com o tempo... novas idéias e conceitos. E aí? A quem devo pagar os royalties por isso?


Vamos trazer esse papo pra um campo que eu domine mais que o vulgo. Falemos do Renascimento (meados do séc. XIV a meados do XVI). As traduções dos autores gregos e latinos antigos, as leituras dos comentadores árabes e europeus de Aristóteles, Platão, Epicuro, Sêneca... são o quê? O que seria de nós se Galileu não utilizasse uma invenção árabe – a luneta – pra olhar para os céus, enxergando dois novos planetas girando na órbita de Júpiter? E quando Thyco Brahe utilizou de geometria euclidiana pra calcular a paralaxe dos cometas, considerados até então fenômenos meteorológicos? Aliás, Kepler – o próprio – nada mais fez que corrigir os cálculos de Brahe, seu professor e mecenas. Newton nunca se sentou embaixo de uma macieira pra ‘descobrir’ a ‘Lei da Gravidade’. Aliás, o próprio conceito de ‘Lei natural’ não é newtoniano. É plágio, é cópia. E daí? “Sentamos nos ombros de gigantes para enxergarmos mais longe que eles”. Os gigantes eram os grandes autores clássicos. Os pigmeus da brincadeira eram os grandes nomes do Renascimento e da Revolução Científica.


Uma idéia não tem um único dono. Tem uma espécie inteira. Todo e qualquer conhecimento deriva de incontáveis vidas ‘perdidas’ em pesquisa, em labor inventivo, em palavras – escritas ou não – em noites mal dormidas, em enxaquecas, doenças, mortes. Presunção demais acreditar que podemos chorar porque alguém resolveu copiar um texto nosso e não nos dar o crédito. Eu não dou os créditos a Camões e aos outros heróis que fixaram a língua portuguesa. E uso de ‘sua criação’ o tempo todo. Sequer me lembro dos fenícios por terem talhado os rudimentos de nosso alfabeto. Nem pago os royalties aos hindus por terem elaborado os algarismos que utilizamos pra formar nosso sistema numérico. Quando como uma pipoca, não digo ao pipoqueiro que sacrifique um guerreiro em nome de algum deus asteca.


Quando criamos algo, precisamos ter em mente que o beneficiário desse ato sublime é a humanidade inteira. Nada mais honesto que publicar uma idéia em um espaço que se pretende democrático como a internet. Um texto em um blog é de domínio público. Ou, ao menos, deveria ser. Ademais, as lágrimas roladas por ter um texto copiado também não são suas, mein freund.


Em tempo: alguém que defende a idéia de 'propriedade intelectual' deve concordar com nossos companheiros estadunidenses; os irmãos Wright foram os primeiros a patentear a idéia de um avião. Santos Dummont nunca patenteou o 14-Bis ou o Demoiselle. A idéia não era dele. Era de uma geração de ilustres físicos que estudavam os conceitos básicos da aerodinâmica desde a Antiguidade Clássica. O que nosso inventor fazia era vender os projetos de construção de um aeroplano em lojas.


P.S.: A quem porventura interessar, o blog é um espaço público. Quem quiser copiar posts, faça. Não preciso permitir isso. Simplesmente faça. O fundamento da 'propriedade intelectual' é o mesmo para músicas, imagens, textos, etc. Copie. Cole. "Contra burguês, baixe mp3" (não Carol, isso não foi inventado pelo 'Teatro Mágico').

sábado, 15 de março de 2008

Uma ode à língua materna.

Língua Portuguesa
(Olavo Bilac)

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

domingo, 9 de março de 2008

O velho moço (trocadilho)

Então ele caminhava sobre seus próprios passos. Sempre devagar, sempre preciso. O mesmo caminho de sempre, sem nunca enjoar. Era quase como uma terapia.

Não que a vida fosse calma... muito pelo contrário. Mas esses trinta minutos diários de caminhada, nessa rotina em que ele poderia prever cada acontecimento vindouro, eram seus trinta minutos de paz. Mais do que necessário.

Sempre o mesmo ritual: coloca o pé na soleira da porta, planta o corpo na calçada em frente de casa, estica o corpo e inspira o ar frio da rua, em um barulho irritante. Uma fungada de leve. E aí, zombando de toda a saúde e oxigênio à sua volta, ele acende um cigarro. Dá uma baforada pro alto e se diverte tentando separar a fumaça do cigarro daquela fumacinha, que nada mais é que o ar quente dos pulmões se condensando.





Daí ele começa seus passos. Intermitentes, intermináveis, um colosso de carne e ossos sempre em frente, como um Panzer que não se deixa atrapalhar pelos cadáveres em seu caminho. Assim ele vai, atropelando os sonhos e fantasias ordinários de gente ordinária: é seu momento de triunfo, nada pode detê-lo.

Cumprimenta o verdureiro que anuncia a mais nova alface comum, faz um carinho na criança que vai pra escola, um tapinha nas costas do cachaceiro das seis da manhã. Pensa sobre como a vida passou rápido e ele já caminha para os seus cinquenta verões - embora esteja no meio do inverno - e como sempre se considerou velho.

Velho, sim. As dores imaginárias de sempre se tornaram uma artrite que anuncia a mudança de tempo. Os hábitos taciturnos, a mania de reclamar de tudo e falar mal da juventude... isso ele carrega consigo desde os seus quinze anos de idade. Enquanto seus amigos liam Monteiro Lobato, ele se divertia com Dostoiévski. No fim das contas, dá tudo no mesmo. Só porcaria. Porcaria russa ou brasileira, fede tudo igual. Já foi o tempo em que ele se orgulhava de sua ampla experiência literária. Hoje ele é um cínico.

Ainda falta pra chegar à fábrica. Começou a trabalhar tarde, então ainda não se aposentou. Vive torcendo pra que perca um dedo e poder se aposentar por invalidez. Porque trabalho é coisa pra trabalhador. Ele não é um trabalhador. Aliás, odeia a idéia de trabalhar. Ele pensa demais. Sempre pensou. Pensava, inclusive, que a única coisa boa de ser velho era não precisar trabalhar. Pensou errado. E velho ele sempre foi.

E velho ele continua. Caminhando, porque se recusa a não pagar ônibus. Ademais, são seus trinta minutos diários de glória. E ele não trocaria trinta anos de juventude por isso.

sábado, 8 de março de 2008

Fumaças e Vapores

Precisava de um lugar menos 'temático' pras minhas (di)vagações da madrugada. Algo mais genérico. Nada relacionado aos astros ou ao mundo vegetativo. Pensei: "- O que há de mais constante em minha vida, além da tatuagem e da minha impertinência?". A resposta era óbvia... nicotina.



Aceita um?



Então, sinta-se à vontade por aqui. A fumaça pode até incomodar, mas isso não é problema meu. Culpe a você mesmo ou a Deus. Não acredito na existência de ambos.

Se quiser, sirva-se de uma xícara de café.